Em 20 de maio de 2025, a Câmara Municipal de Vitória aprovou, em regime de urgência, o Projeto de Lei nº 198/2025, que proíbe o município de contratar shows, artistas e eventos públicos que promovam:
I – Apologia ou exaltação de práticas criminosas ou contravenções penais;
II – Incitação à violência, ao uso de armas, ao tráfico ou uso de entorpecentes;
III – Enaltecimento de facções criminosas, organizações milicianas ou do crime organizado;
IV – Discurso que ofenda os princípios da dignidade da pessoa humana, da moralidade istrativa ou da segurança pública.
O projeto aguarda sanção ou veto do prefeito municipal, que terá a difícil missão de decidir se poderá contratar as mesmas atrações que contratou para a arena verão de 2025.
Nos termos do PL 198/2025, a própria Prefeitura poderia enfrentar dificuldades ao contratar atrações como a banda Biquíni, que se apresentou em 24 de janeiro de 2025, na Praia de Camburi, com o repertório incluindo a música Tédio, que aborda ideação suicida:
O que corrói é o tédio
Um dia eu fico cego
Me atiro deste prédio.
Esse é só um exemplo, claro, não há nada de errado com a manifestação artística que demonstre um episódio de sofrimento humano, a arte encontra beleza no sorriso e na dor ou, como escreveu Caetano Veloso, nasce da dor e gera o prazer.
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A questão mais controversa está na vagueza e enorme abstração dos termos adotados pela lei. Como definir que o princípio da dignidade da pessoa humana estaria sendo violado?
Estaria a saudosa compositora Marília Mendonça atentando contra a dignidade humana quando narra que sua amiga estava “bebaça, subindo na mesa, virando garrafa”?
Pergunto, pois, quem já pôde visualizar uma cena como essas sabe que a dignidade está longe da pessoa descontrolada pelo consumo excessivo de bebida alcoólica.
Estaria MC Cabelinho atentando contra a segurança pública, quando relata, no cypher “Favela Vive 4”: “Eu ouço tiros e 12 por um, sirenes e latidos de cachorro
Deus, nunca vi finalidade dessa guerra burra que rola no morro?”
Estaria Belchior incitando o uso de armas e a violência quando canta: “Mas, se depois de cantar, você ainda quiser me atirar, mate-me logo, à tarde, às três?”
Ainda que pareça evidente para muitos, é importante lembrar que a liberdade de manifestação artística não é irrestrita, assim como nenhuma outra liberdade é.
O professor Luiz Roberto Barroso, em seu Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, ensina que:
“Para demarcar o conteúdo e alcance de um direito fundamental, o intérprete precisará levar em conta aspectos intrínsecos ao direito em questão […] e aspectos externos a ele, relacionados com a multiplicidade de outros direitos e interesses que existem no mundo jurídico, também com proteção constitucional”.
Em outras palavras, o exercício de qualquer direito não deve ultraar os limites impostos por outros direitos.
Apesar de toda questão técnico-jurídica que a temática envolve, algo consegue ser ainda mais preocupante: a possível seletividade punitiva.
Como é publicamente sabido, o PL aprovado em Vitória não é uma ideia original dos vereadores proponentes e apoiadores, mas um movimento que está espalhado pelo Brasil, sendo discutido em todas as esferas da federação e em todas as regiões e, como o próprio “apelido legislativo” indica, surgiu como uma resposta às produções artísticas do músico carioca Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, artisticamente conhecido como Oruam.
Não se trata de analisar a vida do jovem artista, mas apenas de refletir que o movimento de vedação às expressões artísticas nasce apontando para um artista de origem periférica, que canta estilos musicais originários da cultura brasileira negra e marginalizada, o funk e o rap.
Possivelmente, esse fato indique que a lei ora questionada pode ser usada para selecionar e sancionar apenas um grupo determinado, por mais que possua termos amplos e abstratos nos quais poderiam se enquadrar uma infinidade de produções artísticas, inclusive muitas daquelas que são consideradas “clássicas” ou “tradicionais”.
Normas que autorizam sanções com base em conceitos vagos, como “ofensa à moralidade” ou “violação da dignidade humana”, sem critérios objetivos, violam os princípios da legalidade estrita e da segurança jurídica, fundamentais em qualquer Estado Democrático de Direito.
A questão central é: quem será o responsável por avaliar se a prefeitura não poderia contratar um show da cantora Marília Mendonça (quando viva, obviamente) em razão da música “bebaça”?
Seria justo proibir a contratação do show dessa artista e proibir o negócio com a banda Biquíni, citada anteriormente? Quem teria a autoridade para afastar a possibilidade de se tocar Belchior por suposta incitação à violência?
A liberdade de expressão cultural, embora não absoluta, deve ser restringida apenas com base em critérios claros e objetivos.
Diante da vagueza e do risco de seletividade, a chamada “lei anti-Oruam” parece ser mais um instrumento de censura do que uma política legítima de proteção social.